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Política

Como uma carta com críticas ao governo Bolsonaro revelou racha entre bispos brasileiros

A carta estava sendo discutida por sacerdotes antes do vazamento e seria analisada pelo conselho permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em uma reunião marcada para o próximo dia 5 de agosto.

Gazeta do Povo
por  Gazeta do Povo
29/07/2020 19:02 – atualizado há 2 meses
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Uma carta crítica ao governo Bolsonaro redigida por bispos católicos brasileiros vazou para a imprensa no último domingo (26). O documento fala que “o Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história” e diz que há uma "tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República”.

O documento, intitulado “Carta ao Povo de Deus”, seria analisado pelo conselho permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em uma reunião marcada para o próximo dia 5 de agosto, mas acabou sendo enviado antes para a coluna de Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, sem a anuência de muitos dos 152 bispos signatários mencionados por reportagens de diversos veículos nos últimos dias.

A carta estava sendo discutida por sacerdotes antes do vazamento. Alguns bispos se manifestaram contrários ao texto em conversas pela internet. Diante disso, um grupo de bispos favoráveis à carta intuiu que o conteúdo dela seria rechaçado pela CNBB, por causa da oposição interna, e decidiu publicá-la antes de receber a autorização.

O gesto de antecipar a publicação foi visto como um ato de deslealdade até mesmo por uma parcela daqueles que haviam assinado o documento. Alguns bispos tinham firmado a carta com a condição de que ela só fosse publicada depois da aprovação do conselho permanente.

Na tarde da terça-feira (28), o conselho permanente da CNBB tinha uma reunião marcada para formular um discurso da instituição sobre esses acontecimentos. Por enquanto, a posição oficial é de que “a carta não foi feita pela CNBB, é uma carta dos signatários” e “não reflete o posicionamento da Conferência”.

A reportagem da Gazeta do Povo buscou contato com alguns dos signatários mencionados pela reportagem da Folha de S.Paulo, como o arcebispo de Belém, dom Alberto Taveira Corrêa, o arcebispo de Manaus, dom Leonardo Steiner, e o arcebispo de Belo Horizonte, dom Joaquim Giovani Mol, mas nenhum deles quis se pronunciar.

O que diz a carta dos bispos

O documento cita diretamente tanto o presidente da República, Jair Bolsonaro, quanto o ministro da Economia, Paulo Guedes. Indiretamente, faz críticas a diversos setores do governo federal, como os ministérios da Saúde, da Educação e das Relações Exteriores.

Os bispos começam dizendo que se sentem “interpelados pela gravidade do momento em que vivemos” e não têm interesses "político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza". Afirmam que o Brasil vive um “cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova” e que “essa realidade não comporta indiferença”.

Em referência sugestiva à terminologia que costuma ser empregada por católicos em discussões sobre o aborto, os bispos falam que estão agindo “em favor da vida”, principalmente “dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta”. “É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário”, afirmam os bispos.

Os autores da carta também criticam “discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela Covid-19” e a “incapacidade e inabilidade do governo federal” em enfrentar as atuais crises.

Atacam também as reformas trabalhista e previdenciária, que, para eles, são “armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo”. Criticam a liberação do “uso de agrotóxicos antes proibidos” e a falta de controle dos desmatamentos e dizem ser “insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo”.

Os bispos também dizem que o governo Bolsonaro se aproxima do totalitarismo e utiliza “expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população”.

Indiretamente, citam diversos setores do governo federal ao acusarem “desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia”. Dizem que o governo mostra “raiva pela educação pública”, apela a “ideias obscurantistas” e escolhe a “educação como inimiga”.

Para os bispos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, “desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos”. O governo federal, segundo eles, “demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade”.

A última crítica vai para o uso do discurso religioso pelo governo. A religião tem sido usada, de acordo com os bispos, “para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes”. Eles afirmam que “é perniciosa toda associação entre religião e poder no estado laico”, especialmente “a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário”.

Últimos papas alertaram para o risco do clericalismo

A tentativa de clérigos de exercer influência direta sobre os rumos políticos da sociedade, como buscaram os bispos por meio da carta, tem sido criticada pelas próprias lideranças da Igreja Católica nas últimas décadas. Os três últimos papas lançaram alertas contra o risco do clericalismo, isto é, do envolvimento indevido do clero na vida social e política.

Em março de 1992, o papa João Paulo II disse na exortação apostólica Pastores dabo vobis que o serviço do sacerdote, “se quer permanecer fiel a si mesmo, é um serviço excelente e essencialmente espiritual”. Segundo ele, isso precisava ser lembrado por causa das “multiformes tendências a secularizar o serviço do padre”. “O seu serviço não é o do médico, do assistente social, do político ou do sindicalista”, afirmou João Paulo II.

Em entrevista para a edição do jornal O Globo do dia 29 de julho de 1990 – exatos trinta anos atrás –, por ocasião de uma visita sua ao Brasil, o então cardeal Joseph Ratzinger, atual papa emérito Bento XVI, disse que o sacerdote “não deve imiscuir-se em assuntos políticos”, para permitir “a liberdade de opções políticas diversas, que, compatíveis com os fundamentos morais da existência humana, são possíveis”. “O sacerdote deve anunciar o Evangelho e, dessa forma, construir a comunidade da Igreja. Fazendo isso, educa e forma as consciências. Através delas, tem a possibilidade de contribuir para a construção de uma sociedade justa”, afirmou na ocasião.

Já o papa Francisco, em uma homilia pregada no Vaticano em 2019 sobre os bispos da Igreja Católica, disse que “a primeira tarefa de um bispo é rezar”. Ele alertou contra a existência de “grupinhos” que “dividem-se por ideologias” e disse que “quando um bispo se afasta do povo de Deus, acaba numa atmosfera de ideologias que nada têm a ver com o ministério”.

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