Educação

Da vulnerabilidade socioeconômica ao mestrado na Espanha: a história de Juliana Ribeiro

Egressa da UFFS, ela saiu do interior de SP com o sonho de estudar Arquitetura e Urbanismo, mas sua força a levou para muito além.

Por Wagner Lenhardt/Assessoria Publicado em 24/08/2021 09:19 - Atualizado em 03/06/2024 10:13

 Para realizar o sonho de ingressar em uma universidade pública, Juliana saiu de Jundiaí (SP) em 2014, rumo a Erechim (RS), para cursar Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). As coisas nunca foram fáceis para a jovem: Juliana encontrava-se em condição de vulnerabilidade socioeconômica. 

Com muito esforço, ingressou na UFFS e, ao longo de sua trajetória acadêmica, agarrou todas as oportunidades que encontrou. Já atuando como pesquisadora, fez uma parte do curso na Argentina enquanto bolsista da Capes. Depois, seu TCC, aprovado com nota 10, recebeu uma menção honrosa do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Com diploma em mãos, embarcou para a Espanha. O destino: a Universidade de Salamanca, onde fez mestrado graças ao auxílio de colegas e professores da UFFS.

Abaixo você confere o depoimento de Juliana – exemplo de como a Universidade Pública pode transformar a vida de brasileiros e brasileiras.

O começo

“Assim como grande parte dos brasileiros, eu venho de uma família proletária. Somadas às questões de classe, também reúno em mim o ser mulher e negra. Além das dificuldades financeiras, sempre tive de encarar situações de racismo e misoginia. Tive dificuldades das mais diversas ao longo de toda a minha vida, inclusive de subsistência, principalmente quando saí de casa para começar meus estudos universitários.

Quando estava no Ensino Médio, decidi que faria o possível para estudar em uma universidade pública, mas foi algo muito mais difícil do que eu poderia ter imaginado. Não fui aprovada em nenhum vestibular entre aqueles que havia feito quando eu estava no 3º ano.

Em 2013 consegui me inscrever em um pré-vestibular popular da Universidade de São Paulo (USP). Tinha aulas de segunda a sábado. Como eu não morava na capital, tinha de acordar às 4 da manhã todos os dias para ir às aulas. Resolvia os exercícios das apostilas na biblioteca. Chegava em casa depois das 23h e boa parte das leituras obrigatórias do vestibular concluí dentro do trem que me levava à Estação da Luz.

Aprendi muitas coisas naquele ano, mas eu sinceramente espero que neste momento nenhum ser humano tenha de passar por semelhante situação para poder estudar, isso pode desencadear muitos problemas de saúde. No ano seguinte, através do SiSU, fui aprovada para o curso de Arquitetura e Urbanismo da UFFS - Campus Erechim.”

Juliana em 2016, durante atividade do Dia da Consciência Negra, na Praça dos Bombeiros, centro de Erechim (Créditos: Acervo pessoal)

O sonho tornado real

“A UFFS é muito especial, eu sou muito grata a cada pessoa que conheci neste espaço tão peculiar e forte. A primeira vez que coloquei os pés no mar foi durante uma viagem de estudos com os meus colegas da arquitetura, e, dentre muitas, esta é uma recordação muito bonita para mim. Além de todas as ferramentas técnicas e acadêmicas que adquiri, a UFFS também me trouxe um afilhado e vários amigos de diversas regiões do país, que muito me ensinaram e ensinam.

Na UFFS aprendi algumas poucas palavras em Kaingang e Guarani, e senti o Minuano em meu rosto. Ao estar tão longe de nossa terra natal, aprendemos a cuidar um do outro como uma espécie de família, porque para muitos estudantes a pessoa mais próxima em momentos difíceis era algum colega da Universidade.

Eu passava praticamente o dia todo na UFFS. O curso é em tempo integral e muitas vezes continuávamos na Universidade depois das aulas para fazer trabalhos da graduação ou atividades de pesquisa, grupo de estudos etc. Tinha as minhas dificuldades pessoais e pensei em desistir algumas vezes. Tinha de fazer alguns bicos nos fins de semana e era realmente cansativo dar conta de tudo, mas felizmente as coisas foram se encaixando.”

Direitos humanos

“Meu Trabalho Final de Graduação (TFG) foi um projeto de um museu dos direitos humanos. Ele foi aprovado com a nota máxima, e recebeu uma menção honrosa do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Em relação ao tema, foram as circunstâncias que me levaram até ele e despertaram em mim um interesse sincero e a energia necessária para debruçar-me sobre livros, revistas, entrevistas, obras arquitetônicas, documentários e uma cidade que eu muito pouco conhecia.

Do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFFS carrego comigo a concepção de que o nosso trabalho deve ser crítico em suas proposições do presente e em suas leituras do passado, e foi por estas e outras razões que estudar os ocos e as dívidas históricas que temos no Brasil, relacionadas aos direitos humanos, manifestadas num anteprojeto de espaço arquitetônico público como ferramenta de revisão histórica, representou para mim uma maneira de, minimamente, reafirmar a urgência de arquiteturas, espaços e políticas pela memória no nosso país.

Falando em memória, lembro que eram frequentes as manifestações sobre a implementação das ações afirmativas nas universidades. Diziam que as ações diminuiriam a qualidade das universidades públicas brasileiras, tão reconhecidas nacional e internacionalmente. Bom, eu fui uma estudante cotista de uma universidade pública, e não sou um caso isolado. É importante afirmar e reafirmar isso para não esquecermos que todos os ataques às ações afirmativas nada tinham a ver com ‘qualidade’, e que, como estudantes marginalizados, trabalhamos com seriedade apesar de todos os estigmas construídos em relação a nós.”

Intercâmbio e pesquisa

“Durante a graduação eu tentei aproveitar ao máximo todas as oportunidades de aprimorar meus estudos, principalmente através de projetos de pesquisa, extensão e cultura. Num destes eu fui bolsista da Capes através do Programa Abdias Nascimento, e a partir de um intercâmbio, realizado no segundo ano da pesquisa, tive a oportunidade de ir para a Argentina estudar Antropologia Social durante um ano. Havia estudado castelhano por conta própria antes de viajar, aprimorei praticando durante a pesquisa, nas aulas e provas da graduação em Antropologia Social. Quando retornei ao Brasil, realizei o CELU [Certificado de Espanhol: Língua e Uso] através da UFFS e obtive a proficiência no idioma.

Foi graças a este tipo de bolsa que pude realizar minha primeira pesquisa fora do país e aprender um segundo idioma, e isso foi muito importante para motivar a minha curiosidade de seguir aprendendo através da investigação.”

Juliana em Siena, na Itália, durante viagem de estudos do mestrado (Créditos: Acervo pessoal)

Mestrado na Europa e o auxílio dos colegas

“Pesquisando um pouco sobre as áreas de interesse em que pretendia seguir meus estudos, e pelo desmantelamento do aparato educativo nestes últimos anos, comecei a me inscrever em universidades estrangeiras que ofereciam bolsas para mestrado. Justamente na Espanha havia bolsas nas áreas em que queria estudar. Fui aprovada em dois mestrados mas, infelizmente, não consegui nenhuma bolsa. Já havia desistido quando comentei com alguns amigos que havia sido aprovada.

Eles me motivaram a começar uma vaquinha virtual para arrecadar o que necessitava para continuar meus estudos. Fizemos isso de diversas maneiras, não somente com doações, mas também com o que cada um de nós sabíamos (e podíamos) fazer mesmo de maneira virtual. Vendemos comida, fizemos cadernos, minicursos, compartilhamos todos os dias a publicação da campanha e em pouco tempo conseguimos alcançar a meta. Assim, escolhi o Mestrado em Estudos Avançados em História da Arte e, no segundo semestre de 2020, comecei presencialmente meus estudos na Universidade de Salamanca (USAL), na Espanha.”

Dissertação aprovada

“No dia 15 de julho deste ano ocorreu a defesa da minha dissertação de mestrado. A dissertação defendida e aprovada, em suma, trata das relações analíticas entre arte, estudos subalternos, arquitetura e território na contemporaneidade. O mestrado que cursei faz parte do programa de pós-graduação do Departamento de História da Arte e Belas Artes da USAL. Como continuidade, há a possibilidade de realizar estágio ou pesquisa como forma de concluir 2 anos na área estudada antes de regressar ao Brasil.”

Compromisso coletivo

“O que eu gostaria de deixar como recado é: resistam! E lutem sempre pela educação pública de qualidade durante e depois da sua formação. A educação é uma ferramenta transformadora muito importante e é nosso dever, independentemente da área que estudamos, lutar para que, assim como nós, outros ocupem a cadeira que ocupamos um dia numa sala de aula para seguir aperfeiçoando e melhorando o pouquinho do que deixamos ali. Enquanto o básico não for para todos, incluindo a educação, não poderemos descansar. A UFFS nasceu de um compromisso coletivo e transformou a vida de várias pessoas, não podemos esquecer disso jamais.”

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