Saúde
Estudo associa uso de hidroxicloroquina a alta de mortes em pacientes com Covid-19
Meta-análise de 28 estudos registrou mortalidade maior em 10 mil pacientes; uso da cloroquina demonstrou nenhum benefício contra a doença.
O uso de hidroxicloroquina está associado a uma mortalidade maior em pacientes com Covid-19, e o da cloroquina não apresenta nenhum benefício contra a doença.
Essas são as conclusões de uma meta-análise, assinada por quase cem cientistas, publicada neste mês na revista especializada Nature. O documento analisou de forma colaborativa 28 estudos, publicados ou não, nos quais participaram 10.319 pacientes com Covid-19.
O uso de hidroxicloroquina foi avaliado em 26 estudos (com 10.012 pacientes) e o de cloroquina em quatro estudos (307 pacientes). A maioria dos trabalhos (79%) foi conduzida no ambiente intra-hospitalar.
A hidroxicloroquina é uma versão modificada da cloroquina, que causa menos efeitos colaterais, por isso é mais usada para tratamento de malária, lúpus e artrite reumatoide, além de ser a versão mais comercializada em farmácias. É por esse motivo que há mais estudos sobre a hidroxicloroquina do que a cloroquina.
Na meta-análise, 14% dos pacientes de Covid-19 tratados com a hidroxicloroquina morreram (606 de 4.316), enquanto faleceram 16,9% (960 de 5.696) dos pacientes do grupo controle. Entre os que tomaram cloroquina, 11% foram a óbito (18 de 160), enquanto entre os pacientes do grupo controle a mortalidade ficou em 8%.
“Os resultados mostram que não houve benefício em redução de mortalidade em pacientes com casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 com o uso de cloroquina e que o uso de hidroxicloroquina esteve associado a maior mortalidade entre os que receberam a medicação”, descreve o documento.
O grupo formado por 94 pesquisadores afirma que a meta-análise “oferece informações úteis para uma situação de saúde desafiadora”, dentro de um contexto no qual “centenas de milhares de pacientes receberam hidroxicloroquina e cloroquina fora dos ensaios clínicos, sem evidências de seus efeitos benéficos”.
“O interesse público é sem precedentes, com evidências iniciais fracas que apoiam os méritos da hidroxicloroquina sendo amplamente discutidos em algumas mídias e redes sociais, apesar dos resultados desfavoráveis por um grande estudo clínico randomizado controlado”, descreve o documento.
Segundo o pool de pesquisadores, a análise abrangente só foi possível porque houve uma colaboração de pesquisadores que concordaram em compartilhar seus dados, o que permitiu que o estudo não apenas resumisse as evidências já existentes, mas também ilustrasse o acúmulo das que não estariam disponíveis de outra forma.
A meta-análise não abordou o uso profilático nem outros resultados além da mortalidade. “Todos os estudos, exceto três, excluíram crianças e a maioria excluiu mulheres grávidas ou lactantes. Para pacientes ambulatoriais idosos ou com comorbidades, as evidências são esparsas.
A maioria dos 28 estudos excluiu também pessoas com comorbidades com maior risco de eventos adversos pelo uso de hidroxicloroquina ou cloroquina, detalhou o documento.
Ineficácia comprovada
O documento afirma a ineficácia da hidroxicloroquina e cloroquina com base em estudos anteriores. Um deles, o Recovery, da Universidade de Oxford, concluiu que havia maior chance de morte na administração da hidroxicloroquina do que entre pacientes que não haviam tomado a droga.
O estudo mostrou que após 28 dias da administração do medicamento entre pacientes com Covid-19, 25,7% haviam morrido, em comparação com 23,5% dos que tinham recebido os cuidados habituais isoladamente. Diante dos resultados, o remédio parou de ser administrado imediatamente, e a pesquisa foi cancelada.
“O Recovery indicou nenhum benefício na mortalidade para pacientes com Covid-19 tratados [com hidroxicloroquina], junto com hospitalização mais longa e maior risco de progressão para ventilação mecânica invasiva e / ou morte”, descreve o documento.
A meta-análise cita também o estudo Solidarity, da Organização Mundial da Saúde (OMS), que também já havia indicado ausência de benefícios na mortalidade por Covid-19 com o uso da hidroxicloroquina. Ao contrário, o estudo alertou que seu uso pode causar efeitos adversos. Desde então, a OMS faz “forte recomendação” contra seu uso no combate ao coronavírus.
Efeitos adversos
De acordo com Bruno Caramelli, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a meta-análise confirma a falta de eficácia da hidroxicloroquina e da cloroquina no combate à Covid, adicionando sua relação com a mortalidade dos infectados com Covid-19.
“Já sabíamos que a hidroxicloroquina e a cloroquina não funcionam para tratar Covid-19, mas agora, com essa meta-análise, sabemos que o remédio pode matar. Quem recebe hidroxicloroquina para tratar Covid-19 tem uma chance de morte 11% maior do que quem não tomou”, afirma Caramelli.
Estudos anteriores já demonstraram que o uso indiscriminado da hidroxicloroquina pode causar arritmias cardíacas, mas o mais importante é que ele não funciona para Covid-19. “Sendo assim, não deveria sequer ser receitado”, afirma o médico.
Estudos randomizados já comprovaram que a droga é ineficaz tanto na prevenção quanto nos tratamentos de casos moderados e graves de Covid-19, sendo contraindicado em todos eles, explica o infectologista Alexandre Naime, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Os trabalhos mostram que a hidroxicloroquina no paciente crítico pode aumentar o risco de distúrbios cardíacos, sobretudo em dosagens altas”, afirma.
O uso indiscriminado da droga, com dosagens diferentes aplicadas em hospitais e no uso pelo kit Covid é ainda mais perigoso porque deixa uma zona cinzenta sobre os efeitos colaterais do medicamento, explica o infectologista Álvaro da Costa.
Uso no Brasil
O Ministério da Saúde já fez recomendação públicado uso da hidroxicloroquina para estados e municípios. Em junho do ano passado, o Ministério enviou para a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) um documento que trazia como “medidas essenciais a tomar e divulgar” a consideração da prescrição do remédio.
A recomendação da pasta virou alvo de investigação da recentemente instalada Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19. Planos de saúde são acusados de oferecer o medicamento mesmo sem comprovação científica e também viraram alvo da CPI.
Diante desse quadro, a distribuição da medicação no Brasil teve um salto no ano passado. O Painel de Notificações de Farmacovigilância da Anvisa registrou, em 2020, um aumento de 128% nas notificações de efeitos adversos por ingestão de medicamentos.
A lista é encabeçada por alguns nomes que ficaram bastante populares por aqui durante a pandemia: cloroquina (aumento de 558%), azitromicina (228%) e até a ivermectina, que em 2019 não registrava nenhum caso de efeito adverso, e no ano passado registrou 11.
O presidente Jair Bolsonaro já defendeu em várias ocasiões o uso da droga. Em uma delas, chegou a dizer para não perturbarem quem quisesse tomar. E, em outra, incentivou a liberdade dos médicos em receitar o que achassem correto.
Erro médico
Pressionado para falar em nome da classe médica, o CFM (Conselho Federal de Medicina) se pronunciou sobre a ineficácia da medicação recentemente, meses depois de atribuir a responsabilidade individual aos médicos por receitá-la. Segundo o vice-presidente do CFM, Donizette Giamberardino Filho, a entidade não endossa nenhum medicamento para tratamento da Covid-19.
No ano passado, o conselho aprovou parecer que facultou aos médicos a prescrição da cloroquina e da hidroxicloroquina para pacientes com sintomas leves, moderados e críticos de Covid-19. Questionado sobre o fato de médicos ainda prescreveram a hidroxicloroquina no Brasil, Donizette afirmou que os médicos poderiam “responder por isso”.
Para Caramelli, as evidências científicas da ineficácia da hidroxicloroquina deveriam ser suficientes para a prescrição ser banida do País e não encarada como uma forma de autonomia do médico. Para o professor da USP, receitar uma medicação que sabidamente não resolve o problema é um exemplo de erro médico.
“Se existe evidência de que a medicação prescrita não funciona e mesmo assim o médico prescrever, isso tem que ser incorrido como erro médico, com efeitos de cassação de CRM”, afirma.
A controvérsia em torno do uso da droga no Brasil ganhou outro contorno após denúncia de experiências com nebulização de hidroxicloroquina em pacientes no Estado do Amazonas. Para Álvaro da Costa, a estratégia não tem embasamento científico e deve ser considerada um “ato criminoso”.
“Sabemos que medicação inalatória pode desencadear bronco espasmo. Por isso tem que ser muito estudado, avaliado em ensaios clínicos, para que a gente possa utilizar em larga escala”, afirma o infectologista.